“A cor púrpura” (1982) escrito por Alice Walker (nascida em Geórgia, EUA em 1944, durante o Jim Crow), foi um sucesso, literário e financeiro, que ganhou dentre outros prêmios o Pulitzer. O romance epistolar narra em primeira pessoa a vida de Celie, uma mulher negra no sul dos Estados Unidos da primeira metade do século XX, através das cartas escritas a Deus. Os infortúnios da vida de Celie, a descrença crescente em um deus que possa ter criado ou ser testemunha das violências que ela sofre e a saudade, fazem com que, em um segundo momento, às cartas passem a ser trocadas com sua irmã, Nettie, ainda que ela nunca as receba.

As cartas de Celie revelam suas relações com as mulheres de sua vida, sobretudo com seu amor, a cantora Shug Avery, desenhando um retrato das feminilidade negras, que é o que há de mais bonito e potente no livro. Ainda que as editoras, críticos e resenhistas insistam em dar centralidade às relações abusivas que Celie teve com seu pai e marido, “A cor púrpura” é sobre a transformação da personagem, que se culpava por toda sorte de coisas que lhe aconteciam, à questionadora do status quo estruturalmente racista, machista e homofóbico. “A cor púrpura” e até mesmo sobre como relacionamento inter raciais podem ser deformados pelo racismo, mas é preciso dizer novamente: não é sobre as cicatrizes, é sobre auto-empoderamento e, amor, amizade e prazer entre mulheres.
Talvez por isso, na palavras de Alice Walker, escrever o romance não tenha custado mais que um ano, mas tenha custado “sua própria saúde mental, seu casamento, todo tipo de dores de cabeça e revelações” (Walker 1983,355): escrever é desaguar.
O estudo e o esforço literário de Alice Walker em marcar nas cartas a oralidade e ascendência africana de Celie é ignorado pela tradução brasileira do livro, ao transformar o Black English ou inglês vernáculo afro-americano (que poderia, por aproximação do leitor brasileiro, ser o nosso pretoguês conceituado por Lélia Gonzalez) em uma versão tosca e simplesmente errada, reforçando pela tradução, um lugar de subalternidade ocupado por Celie e por aqueles que não dominam a magia branca, como diria Makota Valdina.
O fato da crítica branca ter acolhido bem a obra também nos serve de alerta para o quanto certas narrativas pretas, sobretudo as de sofrimento, são fetichizadas pela branquitude. Então não foi surpresa quando “A cor púrpura” foi adaptado nos anos seguinte por Mennos Meyjes e Steven Spielberg, em uma tentativa de se firmarem como roteirista e diretor, respectivamente, capazes de produzir histórias densas diferentes dos blockbusters que haviam feito até então, em uma clara apropriação da narrativa negra. A lesbiandade da protagonista Celie e as masculinidade negras representadas e discutidas profundamente na obra de Walker são transformadas pelo olhar branco que estereotipa e distorce essas personagens, de forma a melhor se encaixar no pacto narcisístico branco, construindo um melodrama onde o sucesso da heroína resulta não apenas em glória, mas também na restauração e reafirmação da ordem social ou seja, retirando a responsabilidade dos brancos sobre as tragédias vividas pelas mulheres negras, por Celie. Não deixem que o filme ocupe o seu imaginário, é preciso achar as negras palavras por trás dos olhares brancos. Ao reivindicar a cor púrpura, um símbolo do amor entre mulheres negras, Alice Walker, se nega aceitar qualquer coisa entre o espectro limitado de cores que a sociedade costuma usar para retratar-se.
E se há um, “eu acho que Deus deve ficar fora de si se você passa pela cor púrpura num campo qualquer e nem repara.”
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