Primeiro preciso dizer que a comparação é tão inevitável quanto injusta. Inevitável pela temporalidade, pelo tom, pelo sotaque, porque colocam o trauma à serviço da criação e buscam cura de um pelo outro. Injusto, pois não há como se fazer juízo de quem sofre mais, quem traduziu melhor o sofrimento, quem merece mais ou menos louros por isso, em uma espécie de hierarquia de dores. Mas se tem uma coisa que a arte permite, senão pede, é o julgamento, então feito essa mea culpa mequetrefe, vamos a ela… a comparação.
Se eu tiver sorte, deus me ajude, no fim estaremos expandindo a discussão ao invés de encerrando e, espero, não serei cancelada.
Bebe Rena está gerando uma puta comoção. Virou um guess who game. Fortalece a terceirização dos infortúnios - mecanismo de lida de traumas mais macho impossível. Mas… abre um diálogo sobre vulnerabilidade e abusos de corpos, que no imaginário, não são vítimas, criando um espaço para que a gente grite juntos, "olha, essa porra de patriarcado também está deixando você dodói."
Mas e se sua comoção perdeu o ponto? Passa do ponto quando nubla a metáfora, tira o mistério da narração, da história sobre trauma, processo criativo e seus imbricamentos e se entrega a um true crime horror comedy picture show.
E quando as nuvens começam a chegar? Que tal no "essa é uma história real"?
O mundo está inundado de informação e junto a explicações, se apresentam em narrativas que matam, por assim dizer, a narração, que é a vida em si. Explico: não tem espaço para pensamento.
Em nome da informação, escrutina-se a vida de personagens-autores até que, a tal da verdade (e tomara que seja a minha e não a sua!) apareça. E se ela der as caras, então que venha a justiça! Mora dentro de cada serzinho espectador um justiceiro ávido por linchamento.
E tudo porque é "uma história real".
Se o personagem se autoriza a compulsivamente investigar a stalker (tipo, o que ele faria com isso, sabe?!), por que eu, espectador-justiceiro, também não o faria? A obra autoriza, pô! É uma história real.
E se Martha não existir? Ou se foi superlatada para 'benefício' do drama? É audiovisual, a gente tem que mostrar e não falar - disse o manual. E se foi a forma como Gadd escolheu personificar o bloqueio que o trauma lhe causou e o medo de sua mediocridade artística? O espectador consegue abrir espaço para esse pensamento? Ou, gatilhado pelo "uma história real", foi atrás de saber qual era dessa 'maluca'?
Tá… Mas Maíra, eu li que ela existe mesmo, o cara falou lá, pô… a louc… quer dizer, a mulher tá até processando ele. Bom, se escolhemos sacar o google para checar informações, com as quais temos que fazer algo - justiça!!!!-, por que estamos vendo série mesmo? Suspendam as canetas escritores do mundo todo, vamos parar de narrar, de fazer ficção, de viver… Ok, tô exagerando. Eu não tenho 'drama' tatuado no peito à toa.
Eu sempre vou falar das estruturas pois não há arte sem técnica… Mas quando Coel escolhe não encerrar seu trauma (e trama) em um ÚNICO desfecho possível, jogando com o preconceitos do espectador, e de si mesma, ela estende a mão para os gatilhosos e gatilhados, mostrando o tal do ponto perdido… Ó pra cá: não é sobre o culpado. É sobre trauma, criação, a vida ali, complexa as hell, as earth whatever.
Existe uma linha editorial de cada plataforma, que venhamos que convenhamos, muitas vezes nos orienta, enquanto criativos, a sermos mais herméticos com nossas histórias, e talvez esteja aí, e não nas as escolhas do autor, a razão pra todos esses desdobramentos. Quem aí não se deparou com a campanha da plataforma de Bebê Rena que memefica Martha e em consequência todas mulheres que se parecem fisicamente com ela? Será que depois da série, estamos acolhendo os homens que sofrem abuso e condenando aqueles que praticam? Ou estamos recreativamente sendo gordofóbicos e misóginos?
Em muita medida, as escolhas narrativas, estrutura, aviso de baseada em fatos reais, convenções de gênero narrativo, a crise da narração, a sanha por linchamento… desumanizam. E acho que ele só queria um abraço, uma caneca de chá e uma rotina em um lugar acolhedor, como em I may destroy you… ele merecia. Mas ao fim o que recebe e a possibilidade de ser ele o próximo algoz. pensou nisso? Pessimista. O caminho para cura vira um precipício, o patriarcado, o machismo, que produzem e sustentam a violência sexual e a cultura do estupro nada seria senão uma fatalidade.
Triste.
Talvez eu pudesse ter ficado só aí, nessa palavra: triste.
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