
Às vezes, criar pode ser como caminhar em uma linha tênue entre a liberdade e a limitação. Como artista e professora, acredito que estou constantemente navegando por entre fronteiras – essas fronteiras, por vezes, se manifestam como muros que restringem, mas em outras, vejo-as como caminhos que me impulsionam a criar algo novo. A tensão entre educar e criar, entre guiar e permitir que o outro encontre sua própria voz, parece me colocar em uma posição de contínua redefinição. Enxergo essa busca incessante por um espaço de invenção que, ironicamente, me faz sentir sempre à margem. Quem sabe seja justamente essa sensação de marginalidade – estar nas bordas do esperado e do possível – o que molda meu trabalho. Parece que, ao tentar encontrar uma definição para escapar das definições, vivo numa encruzilhada. E é a partir dessa inquietude que surge a reflexão sobre o cinema de encruzilhada, um lugar onde o passado, o presente e o futuro se encontram para criar narrativas que desafiam as limitações e celebram a invenção e a resistência.
O que proponho como cinema de encruzilhada poderia ser compreendido como uma manifestação estética e narrativa profundamente enraizada nas experiências afrodiaspóricas. Esse cinema exploraria as tensões entre resistência, multiplicidade e o cruzamento de memórias e temporalidades. O conceito se alinha à Pedagogia das Encruzilhadas de Luiz Rufino, onde a encruzilhada é vista como um ponto de encontro simbólico, cultural e espiritual, no qual o corpo negro, as tradições ancestrais e as dinâmicas contemporâneas se encontram, transgredindo as fronteiras entre o real e o imaginário. Rufino sugere que a encruzilhada se configura como um "espaço de invenção e fricção", possibilitando a criação de novas formas de ser e narrar histórias, subvertendo as normas impostas pelo cinema dominante.
Nesse cinema, haveria uma recusa em adotar a lógica linear e cronológica das narrativas ocidentais tradicionais. O tempo aqui parece fragmentado, criando um campo de tensões onde o passado, o presente e o futuro coexistem em diálogo constante. A proposta de Rufino sobre a encruzilhada como uma "metodologia de criação" implica que as histórias contra hegemônicas se reconfiguram de maneira dinâmica, sem se submeterem a estruturas rígidas impostas pela colonialidade.

Um exemplo dessa estética poderia ser NoirBLUE (2018), de Ana Pi. O documentário-ensaio explora a ancestralidade da diretora enquanto ela viaja entre Brasil, Angola e Portugal, trazendo à tona o corpo negro como um território narrativo. O uso da dança como linguagem central no filme transforma o corpo em um espaço onde a experiência afro-diaspórica se manifesta. Em uma das cenas, Pi dança em meio a uma paisagem urbana, oscilando entre o ritmo da cidade e seus movimentos, o que cria uma fusão entre o corpo e o espaço, reforçando a ideia de que a experiência negra é simultaneamente fluida e resistente.

No cinema de encruzilhada, a multitemporalidade é um aspecto que considero central. Ela desvia da cronologia rígida e oferece um novo entendimento de tempo, como visto (hoje aliás, por dica de Bruno Galindo) em The Last Angel of History (1996), de John Akomfrah, onde a história da diáspora africana é narrada em uma espiral que conecta passado, presente e futuro em um único fluxo. Essa abordagem cria uma constante tensão entre memória e futuro, uma das marcas desse cinema que, ao mesmo tempo, honra o que foi e imagina o que ainda pode ser.

Além disso, a fragmentação narrativa e o entrelaçamento entre o real e o imaginário também são características que me parecem fundamentais desse cinema. Em Línguas Desatadas (1989), de Marlon Riggs, a performance, a poesia e o corpo se tornam as principais ferramentas narrativas, enquanto a intersecção entre esses elementos e a recusa de uma estrutura narrativa convencional revelam a complexidade da experiência negra queer. O filme desconstrói o formato tradicional de narrativa com começo, meio e fim, oferecendo uma experiência que é simultaneamente individual e coletiva, real e simbólica.
No contexto brasileiro, No Coração do Mundo (2019), dirigido por Gabriel Martins e Maurílio Martins, traz essa ideia de encruzilhada ao explorar as histórias fragmentadas da periferia de Contagem, Minas Gerais. Os personagens transitam entre a esperança e o desespero, o real e o sonho, em busca de pertencimento e transformação. A narrativa resiste a soluções fáceis e finais previsíveis, mantendo o espaço da encruzilhada como lugar de constante transição e invenção, onde os limites entre o real e o imaginário estão em contínuo movimento.

Outro exemplo seria Random Acts of Flyness (2018), de Terence Nance, que mistura elementos de ficção científica, documentário, animação e crítica social, criando uma obra que desafia as convenções de gênero e narrativa. Esse tipo de obra faz com que o cinema de encruzilhada se posicione como uma proposta que rompe com as expectativas tradicionais, abrindo caminho para novas possibilidades estéticas e políticas.

A autorreflexividade e a metalinguagem também emergem como importantes convenções. Em The Watermelon Woman (1996), Cheryl Dunye constrói um filme que reflete sobre o processo de criação de narrativas negras, questionando os limites entre ficção e realidade. A busca de uma cineasta negra lésbica pela história de uma atriz esquecida se transforma em uma alegoria sobre a reescrita da história negra, sugerindo que a verdade pode ser reconstruída quando se trata de corpos negros historicamente marginalizados.
Por fim, filmes como Eve's Bayou (1997), de Kasi Lemmons, abordam a encruzilhada entre o místico e o real. A história é contada pela perspectiva de Eve, uma menina que começa a descobrir os segredos de sua família. Aqui, o espaço da encruzilhada surge como o lugar onde o espiritual e o temporal se encontram, desafiando a narrativa linear.
Então, em resumo, acredito que o cinema de encruzilhada emerja como um conjunto de práticas estéticas e políticas que se dedica a inventar (e encantar), a partir da transgressão, as formas narrativas, celebrando as multiplicidades afrodiaspóricas.
AKOMFRAH, John. The Last Angel of History. [Filme]. Channel 4 Television, 1996.
DUNYE, Cheryl. The Watermelon Woman. [Filme]. Dancing Girl Productions, 1996.
LEMMONS, Kasi. Eve's Bayou. [Filme]. Trimark Pictures, 1997.
MARTINS, Gabriel; MARTINS, Maurílio. No Coração do Mundo. [Filme]. Filmes de Plástico, 2019.
PI, Ana. NoirBLUE: Deslocamentos de uma dança. [Filme]. Cinemateca de São Paulo, 2018.
RIGGS, Marlon. Tongues Untied. [Filme]. Signifyin' Works, 1989.
NANCE, Terence. Random Acts of Flyness. [Série de TV]. HBO, 2018.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.

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