O pensamento de Glissant emerge como um eco daquilo que não se fixa, como uma dança que resiste ao controle. Ao se opor ao “nomadismo em flecha” — conceito que descreve a conquista, a linearidade, o movimento que fura o tempo e o espaço em busca de um destino e domínio —, ele propõe a errância, uma poética que recusa o centro, o fim, e, sobretudo, o individualismo. Se a jornada do herói, na tradição ocidental, celebra o amadurecimento e a construção de identidade como percurso solitário, fechado em torno de um objetivo e coroado por um retorno triunfal, Glissant questiona essa lógica e celebra o não-chegar, o estar-em-relação. A errância não se submete a marcos geográficos ou simbólicos; ela flui em múltiplas direções, múltiplos idiomas, e insiste em uma identidade que se constrói no contato com o outro, com o alheio, com o estrangeiro... com o afeto.
A errância rejeita a glorificação do indivíduo e do sucesso como conquista pessoal. Enquanto o herói tradicional busca uma glória final, seu sucesso medido pela capacidade de conquistar e dominar, a personagem da errância recusa o controle e a vitória individual. Em vez disso, ela se transforma pelos encontros, pela relação com o outro, sem a obrigação de retornar ao ponto de partida carregado de vitórias. A narrativa da errância valoriza o caminho, as trocas, e a multiplicidade, deixando de lado o triunfo pessoal para abraçar o coletivo e o fluxo contínuo das relações. Aqui, a construção da identidade ocorre no contato com o outro e através do afeto — a errância se torna uma jornada de transformações compartilhadas.
Essa diferença de perspectiva nos leva a questionar o que significa sucesso em uma narrativa. Se, na jornada do herói, o sucesso é medido pela chegada triunfal, a errância propõe o contrário: não se trata de alcançar um destino ou uma vitória individual, mas de valorizar o processo, as transformações que emergem ao longo do percurso. O foco não está no indivíduo isolado, mas nas relações que o moldam, que constroem sua identidade de maneira fluida e interconectada.
A poética da relação, outro pilar do pensamento glissantiano, nos alerta para os perigos de narrativas centralizadoras e individualistas, aquelas que querem submeter o outro ao mesmo. Aqui, o mundo é um rizoma, sem raiz única, onde os encontros não são colonizados pelo olhar do vencedor. Em vez de uma síntese totalizante, temos trocas, contaminações e complexidades. As narrativas de errância recusam a jornada do herói, não porque não têm destino, mas porque rejeitam a centralidade de um protagonista que triunfa sozinho. Nelas, o poder não está na glória final, mas na fluidez do caminho, nas interações e nas transformações que ocorrem pela relação com o coletivo.
Tá, mas por que eu tô falando disso? Porque essas ideias reverberam no cinema, especialmente por meio de cineastas que subvertem as convenções e criam narrativas que, em suas estruturas, são marcadamente negras — e não apenas na temática ou representação. E vocês sabem, sou obcecada pela estrutura. O drama, em especial, tem um caráter moralizante; é através dele que se desloca o pensamento... bom, não só dele, mas deixa eu defender meu ponto.
Filmes como “Atlantique” (2019), de Mati Diop, e “Moonlight” (2016), de Barry Jenkins, apresentam personagens cujas identidades são moldadas pelas relações e afetos que encontram em seu caminho. Em "Atlantique", a travessia dos jovens senegaleses pelo mar não é glorificada como uma vitória de chegada ou partida. O mar é um espaço de errância, onde a realidade e o sobrenatural se misturam, e o que importa é o movimento, as trocas afetivas que transformam os personagens, especialmente a relação entre Ada e Souleiman. Em “Moonlight”, a vida de Chiron se constrói através das relações afetivas que ele forma com aqueles ao seu redor, em especial Juan, Teresa e Kevin. Em vez de um clímax heróico ou uma vitória pessoal, sua trajetória é marcada por encontros que o moldam silenciosamente ao longo de diferentes fases da vida.
O cinema, portanto, pode se tornar uma prática de errância — não a flecha que fura o alvo, mas o corpo que vagueia, que se deixa atravessar por histórias, línguas, gestos e, sobretudo, afetos. Em cada fragmento, a recusa de um fechamento narrativo e a celebração de uma abertura contínua, de uma identidade que só é porque se relaciona, porque não se fixa no individual, mas se expande no coletivo.
GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Tradução de Celia Sampaio. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2020.
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