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Foto do escritorMaíra Oliveira

Personagens que Cultivam o Impossível


Depois de um dia de desenvolvimento de projeto – quando a criação ainda não tem limites senão o céu – volto aqui para dar continuidade àquela nossa conversa sobre os arquétipos presentes nas nossas narrativas. As narrativas que vêm do sul global, das diásporas, das errâncias...


E o que meu dia de trabalho tem a ver com isso? Faz parte do nosso processo – e muitas vezes é o início dele, como é o caso – pensar o(s) conceito(s), a pergunta fundamental, o coração… Cada criativo-teórico-pensante nomeia de um jeito. Mas é aquele momento em que nos perguntamos o que será dialogado através da criação.


Em meio às delícias que é o processo criativo coletivo, uma pergunta – entre tantas – foi lançada: "Qual é o perfil do nosso personagem?" E perfil, nesse caso, é algo que une personagens diferentes, o que torna tudo mais complexo, já que queremos evitar unificações ou simplificações. E eu, que tenho andado numa vibe cirandeira, respondi que estávamos falando de um "Sobrevivente Visionário".


Na hora, fez todo sentido. Ótimo, genial! Mas o que é isso? Eu, que estou longe de ser um oráculo, segui na minha defesa e argumentei que é resultado da minha busca por novas lentes. Convenci? Não sabemos. Mas não foi apenas uma viagem de ácido. Tem método.


E qual tem sido minha metodologia para isso? Simples: a análise de narrativas contra-hegemônicas à luz de teóricos igualmente orientados, que eu coloco para dialogar com outros. Dessa interação, nascem traduções afetivas das abordagens com as quais venho trabalhando. Ok, ainda parece uma viagem de ácido.


Mas se, depois de ler essa série de textos sobre nossos arquétipos, vocês não embarcarem comigo nessa jornada louca de encontrar novas lentes, podemos perfeitamente continuar com os manuais existentes, não é mesmo? E fingir que nada disso aconteceu. (Emoji de sorriso amarelo).


Ok, você segue lendo... Então, vamos lá. Sei que fui induzindo e que, nesse momento, vocês querem ler sobre ele: o "Sobrevivente Visionário". Mas a verdade é que ele ainda está em elaboração e provavelmente só vai nascer junto a esse novo projeto. Quando pensei nele, lá no início do projeto, outro arquétipo que já tenho mapeado dentro de obras ficcionais se aproximou, e eu queria compartilhar.


A Semeadora do Futuro


A Semeadora de Futuro é um arquétipo que, diante das adversidades, enxerga possibilidades e potencialidades que muitos não conseguem ver. Ela não se limita a aceitar as condições que lhe são impostas; pelo contrário, busca transformar o presente, plantando as sementes para um futuro que ainda não existe. Pumla Gobodo-Madikizela fala sobre o poder do perdão e da esperança como ferramentas para criar um novo futuro, e é justamente essa esperança indomável que define a Semeadora de Futuro. Sua força não reside apenas na capacidade de imaginar um amanhã diferente, mas também na coragem e determinação de transformar essa visão em realidade, desafiando as limitações de seu tempo e espaço.


Letitia "Leti" Lewis, da série Lovecraft Country, é uma Semeadora de Futuro que utiliza sua coragem e desejo de justiça para enfrentar o racismo e as forças sobrenaturais que ameaçam sua comunidade. Em uma das cenas mais marcantes, Leti decide transformar uma mansão assombrada em um refúgio para a comunidade negra de Chicago. Ao fazer isso, ela não está apenas desafiando o status quo da segregação racial, mas também o próprio conceito de espaço seguro e pertencimento para pessoas negras. A casa, que antes representava o terror e a violência da supremacia branca, torna-se, através do esforço e da visão de Leti, um lugar de acolhimento e resistência. Ela não apenas enfrenta os fantasmas literais que habitam a casa, mas também os fantasmas do racismo e da opressão, transformando o local em um símbolo de empoderamento e comunidade.


Outra manifestação da Semeadora de Futuro é o personagem Killmonger, em Pantera Negra. Embora muitas vezes interpretado como um vilão, Killmonger é um dos personagens mais complexos e revolucionários do filme. Ele carrega em si a dor e a raiva de gerações de pessoas negras que foram oprimidas, mas, em vez de aceitar essa realidade, busca transformar Wakanda em uma potência que poderia libertar os povos negros ao redor do mundo. Em uma cena impactante, ele desafia o Conselho de Wakanda, perguntando por que escolheram permanecer isolados enquanto seus irmãos e irmãs sofrem. "Por que o resto do mundo não merece saber o que nós sabemos?", ele questiona, desafiando o reino a considerar um futuro em que sua tecnologia e recursos possam ser usados para combater a opressão global. Killmonger, embora extremo em seus métodos, planta a semente que leva T’Challa a reavaliar a política de isolamento de Wakanda e a imaginar um futuro onde seu país pode ser um farol de esperança e resistência para todos os povos oprimidos.


Amal, a protagonista do livro Amal Unbound, também exemplifica a Semeadora de Futuro. Como uma jovem paquistanesa que sonha em ser professora, ela é confrontada com a dura realidade de viver em uma aldeia dominada por um clã que a força a trabalhar como serva para pagar uma dívida de sua família. Em vez de se resignar à sua condição, Amal se recusa a deixar que seu sonho morra. Em uma cena significativa, ela desafia o filho do líder do clã, afirmando que a educação é um direito que não pode ser tirado dela. Mesmo enfrentando um sistema que parece imutável, Amal encontra maneiras de continuar aprendendo e sonhando, e, ao fazer isso, inspira as outras garotas ao seu redor a questionar o sistema de opressão que as mantém presas. Sua jornada não é apenas sobre libertar a si mesma, mas sobre plantar a ideia de que um futuro diferente é possível para todas as mulheres de sua aldeia.


Aimé Césaire, em seu Caderno de um Retorno ao País Natal, fala sobre a necessidade de reimaginar o futuro como um ato de resistência e transformação. Para a Semeadora de Futuro, essa reimaginação não é um exercício intelectual, mas uma prática diária, uma forma de viver e agir no presente que desafia o que é considerado intransponível. Quando Leti decide comprar a mansão e a transforma em um espaço de acolhimento, ela não apenas desafia o status quo; ela oferece um vislumbre do que a comunidade negra poderia ser em um mundo que a reconhecesse como digna de segurança e pertencimento. Quando Killmonger questiona o isolamento de Wakanda, ele não está apenas fazendo uma crítica; ele está propondo um futuro onde a solidariedade e o poder possam ser compartilhados para a libertação de todos os povos negros.


A Semeadora de Futuro é, portanto, uma figura que nos desafia a ver o mundo não pelo que ele é, mas pelo que ele poderia ser. Ela atua em espaços de resistência e criação, plantando as sementes que um dia se tornarão árvores frondosas de liberdade, igualdade e justiça. Em um mundo que frequentemente tenta reduzir as possibilidades de pessoas racializadas, a Semeadora de Futuro se recusa a ser limitada e, através de seus atos e visões, abre caminhos para que outros a sigam. Ela nos lembra que o futuro não é um destino fixo, mas algo que podemos criar e recriar, desde que tenhamos a coragem de plantar as sementes certas, mesmo em meio às tempestades.


Será que estamos realmente dispostos a ver o mundo pelo que ele pode ser, e não apenas pelo que ele é? Quem, em suas narrativas, também está plantando essas sementes de mudança? E vocês, em meio às suas jornadas criativas, tem desenhado personagens que desafiam as expectativas e encantam o futuro junto com vocês?


GOBODO-MADIKIZELA, Pumla. A Human Being Died That Night: A South African Story of Forgiveness. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2003.

GREEN, Misha (Criadora). Lovecraft Country [Série de TV]. Los Angeles: HBO, 2020.

COOGLER, Ryan (Diretor). Pantera Negra [Filme]. Marvel Studios, 2018.

SAEED, Aisha. Amal Unbound. New York: Nancy Paulsen Books, 2018.

CÉSAIRE, Aimé. Caderno de um Retorno ao País Natal. Trad. Beatriz de Almeida Magalhães. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2021.

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