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Foto do escritorMaíra Oliveira

The Changeling e pistas para criação

Eu sou fã do conteúdo da Apple TV+ e como espectadora-roteirista vejo como eles antecipam tendências e/ou inovações em gêneros bem conhecidos. Qual plataforma/canal não quer o novo Ted Lasso ou Ruptura? Mas bate especialmente ao meu coração perceber que não apenas os conteúdos são tão, sei lá… autênticos, como me parece que os criadores conseguem [posso imaginar a quais duras penas] trazer à baila também propostas longe da zona de conforto do feel good, e ainda sim ser sucesso de público e crítica.


Aqui uma pequena obs: sou familiar da ânsia pelos dramas sem traumas e, apesar de ser eu mesma uma "especialista" e defensora deles, tenho achado quase cínico as estratégicas que escolhemos para equilibrar essas tramas com protagonistas "não-convencionais" [quer dizer, queremos ver, por exemplo, uma menina negra tendo como único objetivo perder a virgindade, mas não queremos que isso passe por obstáculos como, liderar a lista das mais "feias" da escola????].




Exemplo dessa minha divagação, é a série The Changeling, uma adaptação abrangente de oito episódios do romance de terror slash conto de fadas, publicado em 2017 por Victor LaValle. A série acompanha Apollo (LaKeith Stanfield), um livreiro e sua esposa, Emma (Clark Backo), uma bibliotecária, que está convencida de que seu filho foi trocado por uma criatura após ter sido sequestrado por um demônio. E se passa em Manhattan, mas também na misteriosa North Brother Island, na zona rural de Uganda, em Salvador (com participação impactante de Teca Pereira) e em um mundo teatral onde a AIDS é um personagem itself.


A trama toda tem um ritmo bem diferente das séries do mesmo gênero, o que vai te levar a uma descompressão forçada, mas que no fim você vai agradecer.

E a recompensa é justamente esse mundo teatral, que toma conta do sétimo episódio, e que me faz jogar essas linhas aqui, tamanho fascínio que ele produziu. 


Bem sabemos, espectadores de ficção especulativa, que Deuses Americanos já fez pretty much the same, ao costurar a formação de uma ideia de nação à cosmogonias vindas no navio em choque e assimilação com as originárias. E sim, também mistura gêneros narrativos. Mas esse se atreve a pisar no… teatro. Sabe aquele teatro que o parecerista usa pra desprezar o roteiro do seu filme ou série, dizendo que não vai funcionar na tela? Pois é… parece que as vezes funciona. 



Nesse momento da trama, o principal mistério está prestes a ser elucidado e não sabemos se é o pai ou a mãe que está certo. Viemos caminhando com eles até aqui, ora chamando cada um de louco, e ficando louco em consequência, por não ter respostas… daí, eis que eles nos convidam para um passeio tangencial, pela vida da mãe de Apollo, Lillian. Personagem que tinha até então sua função, empurrando a trama do filho, aqui e ali, mas que não tínhamos dimensão do quanto ainda era assombrada pelos acontecimentos de seu passado através da famigerada pergunta: "como as coisas teriam sido diferentes se tivesse ficado em Uganda?". Seu episódio assim se conecta tematicamente a série, ao apresentar uma variação da metáfora da história: "cuidado com o que deseja, pois o sonho de uns pode ser pesadelo de outros". 



E a América se mostrou um pesadelo mesmo. 


E como mostrar isso? Sonho, pesadelo, devaneios… sempre são difíceis de trazer às telas, onde os recursos parecem ilimitados e ao mesmo tempo óbvios - ou você soca tudo no diálogo, ou simplesmente recria o que se passou na cabeça do pobre do personagem, seguido de uma cena clichê em que ele acorda. Ok, funcionar funciona. Mas colocar o personagem para realmente interagir com o sonho/pesadelo, traz nuances de interpretação, dilata o tempo e provoca sensações únicas no espectador. Claro, se tiver uma Adina Porter, melhor ainda. Fazer fichas complexas, como a dimensão do racismo, caírem na cabecinhas dos personagens, empurrá-los a resolução do seus traumas, sem uma grande explanação didática é outro desafio que nós, que usamos da humanidade para criar e nos queremos cada vez menos cínicos, enfrentamos. Não vou entrar em detalhes sobre a série, pois realmente recomendo que vejam… mas encontrei um sinal para isso nesse episódio. E o fato dele terminar com Lillian escrevendo em uma mesa: “Se você está procurando um sinal, é este” deixou tudo mais uhuuuu, creepy e inspirador na mesma medida. 




Depois desse episódio voltamos à trama principal… não ganhamos muitas pistas pro tal mistério, mas ganhamos muitas pistas sobre como o sonho americano é um horror e como os contos de fadas empurram as mulheres para fora de suas próprias histórias para centrar os homens, o que se mostra fundamental [ok… talvez um pequeno spoiler] para virada de ponto de vista que fazemos no final, pois sim, Apolo é um coisinhafofamodeusdocéu, mas é a badass Emma que queremos ver resolver tudo no final.


Tô na expectativa que a segunda temporada entregue isso aí, viu meu povo da Apple [aquelas que acha que tem relevância]! Sigo daqui catando pistas para seguir escrevendo… 

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