Contar histórias ficcionais através de personagens não convencionais, mesmo em formatos que parecem rígidos, tem um poder transformador. A ficção permite imaginar realidades alternativas, explorar subjetividades e complexidades, nuances que o documentário raramente captura. Ela nos oferece a liberdade de criar mundos onde os personagens não precisam ser definidos apenas por opressões ou traumas, mas também pelo amor, pela fantasia, pelo mistério e por todos os aspectos que compõem a experiência humana.
Na ficção, não estamos apenas contando histórias, mas criando espaços para experiências que ainda não existem, expandindo o imaginário coletivo e desafiando o status quo. E assim, a ficção se torna um ato de resistência, uma reescrita do passado e uma projeção de futuros possíveis, enriquecendo a forma como entendemos a humanidade em toda a sua complexidade.
E isso, a gente já sabe.
Mas, depois de tanta insistência por mais diversidade nas telas, depois de ouvir que já existe “outro produto na casa com o mesmo perfil,” depois de passar por todas as etapas de desenvolvimento e ver o protagonismo transferido para uma personagem "padrão" que "de repente ficou mais interessante"… como seguir escrevendo ficção? A cada nova fase de escrita, a cada pitching, a sabatina é exaustiva, nos draga energeticamente como um resfriado draga um homem-branco-hetero-cis.
Quer onde eu queria investir essa energia? Na construção de personagem. Encontrar nossas pessoas nas histórias é um processo árduo; exige revirar o lixo (Oi, Lélia Gonzalez!), expor as entranhas, tirar fantasmas debaixo da cama. E, quando finalmente encontramos essas pessoas, elas estão ali, encolhidas no fundo do armário, tremendo e com muita, muita raiva. As histórias que construímos para elas as tornam fortes, bonitas, prósperas, afetuosas… plenas. Queremos que elas vivam.
Aí você lembra que tudo está no papel. Ops! A vida que você deu à luz precisa ganhar visualidade, e essa visualidade, que só existe a custos, precisa parecer viva para quem pode bancá-los. Você começa a contar sobre suas pessoas, sobre o que elas vivem. Às vezes, fala do fundo do armário, outras vezes da fartura, mas sempre, sempre fala da vida, da humanidade delas.
Mas então chega aquele moço - nem todo moço, mas sempre um moço -, que olha para suas pessoas através de lupas brancas. Lupas brancas. Hum... isso me lembra algo… alguém.
Essas lupas, como as de Carl Jung, com seu "Herói," "Sombra," "Velho Sábio," apoiam a clássica Jornada do Herói, popularizada por Joseph Campbell e adaptada por Christopher Vogler em "A Jornada do Escritor." Ali, personagens são limitados a arquétipos como o Mentor (Velho Sábio), que oferece conselhos cruciais, ou o Trapaceiro (Trickster), que traz caos e humor. Manuais de roteiro reforçam esses papéis, mostrando como eles servem ao crescimento do herói, mas questiono: até que ponto esses conceitos capturam a complexidade dos personagens racializados?
Construir nossos personagens requer um olhar atento também às experiências históricas, sociais e culturais que moldam identidades humanas. Penso em Fred Hampton, interpretado por Daniel Kaluuya em "Judas and the Black Messiah" (dirigido por Shaka King). Hampton não é apenas um "Herói" ou "Mártir"; ele é um jovem líder revolucionário, lutando por uma causa maior enquanto carrega o peso das expectativas e da opressão racista.
Da mesma forma, Tish, em "Se a Rua Beale Falasse" (dirigido por Barry Jenkins e baseado na obra de James Baldwin), transcende os arquétipos de "Donzela" ou "Amante." Sua jornada, marcada por amor, esperança e resistência à injustiça, revela uma profundidade que reflete tanto sua individualidade quanto a realidade de ser uma jovem negra em um mundo que lhe nega justiça.
"A Mulher Melancia" (dirigido por Cheryl Dunye) também nos mostra uma protagonista que desafia categorizações tradicionais, navegando questões de representação, representatividade e identidade enquanto busca sua própria história como cineasta, mulher e lésbica. E Killmonger, em "Pantera Negra," revela como a experiência racializada traz camadas que não se encaixam nos moldes convencionais. Nesses exemplos, as narrativas oferecem uma riqueza que vai além das limitações da ficção tradicional, revelando personagens que resistem, se reinventam e escapam das armadilhas dos estereótipos.
Há uma multiplicidade de experiências negras, diásporas e identidades afrodescendentes que Jung não consegue capturar por completo. É nesse ponto que a conversa com nossos próprios pensadores se torna essencial. Pumla Gobodo-Madikizela, por exemplo, me faz refletir sobre o papel do trauma e do racismo na construção de personagens. Chiron, de "Moonlight," não busca apenas aceitação; ele está tentando se curar em um mundo que constantemente o define por sua cor e sexualidade.
Como a ficção pode, então, representar a reconciliação consigo mesmo de forma que transcenda os arquétipos junguianos?
Aimé Césaire, em "Caderno de um Retorno ao País Natal," propõe que a descolonização exige resgatar ancestralidades e histórias silenciadas pelo colonialismo. A ficção, nesse contexto, não só cria novos mundos, mas reivindica o direito de narrar o passado sob uma perspectiva que foi negada. "O enterro de Kojo" (dirigido por Blitz Bazawule) faz isso ao misturar realismo mágico com tradições africanas para explorar temas de perda, memória e identidade.
Cida Bento traz à tona a branquitude como um conceito que se impõe como norma, e confesso que isso me faz repensar muitos personagens brancos na ficção. Em "Amor de Mãe" (2019), a personagem Thelma exerce sua branquitude ao seguir por quase toda narrativa impune, como algo inquestionável, uma verdade invisível. Não consigo deixar de pensar em como essa ideia é reforçada por narrativas que não questionam a branquitude como uma construção histórica, através de seus personagens. E me pergunto: até que ponto isso não influencia a maneira como personagens racializados da mesma história são percebidos pelo público?
Sylvia Wynter desafia a própria ideia do que significa ser humano, sugerindo que a ficção pode criar novas formas de humanidade além da lógica eurocêntrica. Nnedi Okorafor, em "Who Fears Death," (aliás, aguardando a adaptação, HBO) exemplifica isso, imaginando futuros e realidades que escapam das limitações coloniais.
Já bell hooks nos lembra da importância de subverter o olhar colonial, apresentando personagens negros em sua totalidade, como na série "Insecure," de Issa Rae, que traz protagonistas que vivem suas próprias histórias sem serem definidos por outros olhares senão os seus.
Frantz Fanon fala da descolonização como um processo ativo de resistência. Personagens como Killmonger e Chris, de "Corra!," não aceitam as limitações impostas e lutam por suas próprias narrativas. Isso mostra como a ficção pode ser um espaço de confronto e reinvenção da identidade, rompendo com visões eurocêntricas que reduzem a experiência negra a estereótipos. Toni Morrison, em "Beloved," refaz a história de Sethe, que se recusa a ser definida apenas pelo trauma da escravidão, oferecendo um exemplo de como a ficção pode reimaginar identidades negras fora das lentes coloniais.
Jota Mombaça reforça que a vida negra é uma ficção de sobrevivência. Personagens como Earn, de "Atlanta," ou Bigger Thomas, de "Filho Nativo," capturam a necessidade constante de reinvenção e resistência às narrativas limitantes sobre si mesmos. Construir personagens vai continuar sendo um processo árduo, que exige desvelar nossas histórias, expor cicatrizes e tornar tudo compreensível para aqueles que podem dar 'sustento' a elas. O desafio de fazer com que nossas pessoas encontrem outras pessoas, de atravessarem as barreiras impostas por essas lupas brancas que tentam limitar sua existência criativa, é constante. Mas é justamente no braço dado com os nossos – Gobodo-Madikizela, Aimé Césaire, Cida Bento, Sylvia Wynter, bell hooks, Frantz Fanon, Jota Mombaça – que encontramos pistas, estratégias e a coragem necessária para jogar no mundo não apenas novas histórias, mas os olhos para vê-las.
Então, quando vierem com Jung, chama o bonde.
E que olhos são esses que poderiamos usar? Aqui que busco inspiração em nossos teóricos como e nas perspectivas apresentadas por Clyde W. Ford em "O Herói com Rosto Africano: Mitos da África." Essas referências não estão aqui para oferecer novas "caixinhas" onde colocar nossas pessoas-personagens, mas para nos ajudar a compreender como os mitos africanos e as experiências afro-diaspóricas oferecem uma visão muito mais holística, complexa e multifacetada da humanidade, como já conversamos.
É através desses olhares que começo a provocar o pensamento para novos arquétipos como o "Curador Ancestral," o "Griô Visionário," a "Semeadora de Futuro" ou o "Conjurador do Invisível," entre outros que foram pululuando aqui. Papo de loucura cirandeira? Eu sei. risos nervosos. Mas o surgimento dessas figuras está muito mais preocupado em expandir o que significa ser, resistir, e existir em um mundo do que reduzir experiências.
Esses arquétipos negros que proponho, então, não apenas desafiam as narrativas tradicionais, mas também oferecem uma maneira de construir personagens que realmente reflitam a pluralidade e a riqueza da experiência negra.
E num próximo texto, se vocês quiserem, podemos nos aprofundar em cada um deles, como novas possibilidades para contar nossas pessoas e suas histórias que resistem, reinventem e reencantem o mundo como o conhecemos. Afinal, se a jornada é coletiva e a experiência é plural, que nossos arquétipos sejam tão expansivos e complexos quanto as histórias que estamos destinados a contar. Querem continuar?
BALDWIN, James. If Beale Street Could Talk. Nova York: Dial Press, 1974.
BAZAWULE, Blitz. The Burial of Kojo. Ofofoko Media, 2018. [Filme]
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
CÉSAIRE, Aimé. Caderno de um Retorno ao País Natal. São Paulo: Edusp, 2020.
DUNYE, Cheryl. The Watermelon Woman. Dancing Girl, Inc., 1996. [Filme]
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FORD, Clyde W. O herói com rosto africano: mitos da África. São Paulo: Selo Negro, 2010.
GOBODO-MADIKIZELA, Pumla. A Human Being Died That Night: A South African Story of Forgiveness. Nova York: Houghton Mifflin Harcourt, 2003.
HOOKS, bell. Olhares Negros: Raça e Representação. São Paulo: Elefante, 2019.
JENKINS, Barry. Moonlight. A24, 2016. [Filme]
JENKINS, Barry. If Beale Street Could Talk. Annapurna Pictures, 2018. [Filme]
JUNG, Carl G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
KING, Shaka. Judas and the Black Messiah. Warner Bros., 2021. [Filme]
MORRISON, Toni. Beloved. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
MOMBAÇA, Jota. Não Vai Desabar: Escritos Sobre os Dias Durante e Depois. São Paulo: Orfeu Negro, 2020.
OKORAFOR, Nnedi. Who Fears Death. Nova York: DAW Books, 2010.
RAE, Issa. Insecure. HBO, 2016–2021. [Série de TV]
VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor: Estruturas Míticas para Escritores. 3. ed. São Paulo: Aleph, 2015.
WYNTER, Sylvia. Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom: Towards the Human, After Man, Its Overrepresentation – An Argument. The New Centennial Review, v. 3, n. 3, p. 257-337, 2003.
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