Em Um Outro Brooklyn (Todavia, 2020), Jacqueline Woodson explora a juventude negra norte americana de maneira carregada de lirismo e saudade, através da voz de Augusta, uma antropóloga especializada em ritos de morte, que volta ao Brooklyn para enterrar seu pai.
Retirando a cada página as camadas de poeira da memória da narradora, o romance nos faz questionar o que é real e o que é imaginado na lembrança fragmentada pelas tristezas das perdas carregadas ao longo da vida de Augusta
“Pequenos fragmentos do Brooklyn começaram a desabar revelando a gente”
nos envolvendo mais pelo não dito do que pelo dito. Woodson consegue fazer lembrar o que não pode ser documentado e sugerir o que não pode ser dito, através do prisma de quem tem a menor probabilidade de ser centro na Literatura, se não nos obituários: a juventude negra.
Esses fragmentos de memória criam suspense, em particular, sobre o que aconteceu com a mãe de Augusta, mistério revelado apenas no fim do livro mas que atravessa todas as relações familiares e de afeto da personagem central, sobretudo com seu irmão mais novo.
A melancolia da ausência da mãe detonam uma carência afetiva em Augusta eventualmente superada pela amizade que ela encontra nas meninas do bairro, Sylvia, Angela e Gigi: um exercício literário da dororidade (cumplicidade entre mulheres negras, pois existe dor que só as mulheres negras reconhecem e por isso a sororidade não alcançaria toda a experiência vivida pelas mulheres negras em seu existir histórico - conceito de Vilma Piedade).
Jovens, corajosas e brilhantes - incrivelmente bonitas e terrivelmente sozinhas: Augusta, Sylvia, Angela e Gigi compartilhavam tudo, mas o Brooklyn dos anos 70, dos homens crescidos que procuravam meninas inocentes, das mães e dos futuros que desapareciam na virada de cada esquina, não é menos perigoso que o Biafra na capa da revista Times, sobretudo quando é a cor da pele que possibilita o paralelo. Ainda sim, Woodson nos lembra
“Nós quatro juntas era algo que eles não conseguiam entender. Entendiam [apenas] garotas solitárias de braços cruzados, sobre o peito, suplicando pela invisibilidade”
que onde querem e esperam a rivalidade, o afeto e a união entre as mulheres é político, é poder.
De parágrafos curtos que lembram poesia em prosa, é impossível não tecer comparações com os primeiros romances de Toni Morrison, O olho mais azul e Sula, também sobre jovens negras e, em temática, com o romance seminal de James Baldwin, Another Country (1962) - tradução Terra Estranha, publicada pela Companhia das Letras em 2018 -, que primeiro discute identidades raciais e LGBTQI+ em Nova York na Literatura Norte Americana.
Essa estrutura de tempo fluido impregnada de música preta norte-americana (tem playlist de todas as músicas que contam essa história junto com a autora aqui), retarda a narrativa e contribui lindamente para seu tom onírico ainda com os pés fincados no chão com discussões políticas caras, como gentrificação, luta armada, desobediência civil, religião... Woodson apaga fronteiras entre leitor e personagem, e quase é possível sentir as “histórias pretéritas” do cansaço nas pernas ao pular corda na rua, do molhado da água que jorra nos hidrantes (ou nas mangueiras) no dias de calor, do doce sugado das flores roubadas nos canteiros das vizinhas… Mas "isso é memória", somos lembrados pelo refrão de Um outro Brooklyn, e o presente está longe de ser um um bálsamo para as feridas do que gostaríamos que fosse passado.
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