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Coming of ®age

Foto do escritor: Maíra OliveiraMaíra Oliveira

Atualizado: 3 de out. de 2024

Estou em uma constante busca por autodefinição, autoavaliação e autodeterminação, como propõe Patricia Hill Collins, sabendo que o "auto", nesse caso, reflete não apenas o individual, mas o coletivo. E sim, nossas histórias estão profundamente enraizadas na experiência coletiva que nos molda. Por isso, penso os gêneros narrativos através dessas lentes - vocês vão me ouvir falar muito disso ainda - que estão alinhadas ao nosso locus social, ao lugar de onde falamos e narramos, de modo fundamental.


E um dos gêneros que sempre me interessou é a jornada de amadurecimento, o famoso "coming of age", uma narrativa que explora o crescimento do indivíduo. Contudo, ao observar as trajetórias de amadurecimento de personagens como eu, noto que são frequentemente marcadas pelo profundo sentimento de raiva e resistência, em vez do típico arco de autodescoberta e superação individual. Algo com essa perspectiva está equivocado. Foi por trás desse "equívoco" que cheguei ao conceito de "coming of (r)age".


O conceito de "coming of (r)age" se diferencia do tradicional "coming of age" ao enfatizar como o sentimento de raiva e revolta torna-se central nas experiências de personagens negras em processos de amadurecimento, especialmente dentro dos cinemas negros e afrodiaspóricos. Enquanto os filmes de "coming of age" muitas vezes focam na jornada de autodescoberta e crescimento individual, o "coming of (r)age" destaca como a raiva, motivada pelo racismo estrutural, pela violência e pela opressão, é parte integrante do processo de transformação dessas personagens.



Essa ideia foi elaborada pela pesquisadora Lashon Daley, que examinou como a raiva se manifesta nas experiências de meninas negras em filmes contemporâneos. Daley observou que, em vez de serem meramente retratadas como amadurecendo, essas personagens experimentam a raiva como uma reação a um mundo que constantemente as marginaliza e as violenta. Filmes como The Fits (2015), The Hate U Give (2018), Girlhood (2014) e See You Yesterday (2019) exemplificam esse gênero. Nessas narrativas, as personagens enfrentam o sentimento de raiva de diferentes formas: sendo alvo de violência por parte de suas comunidades, resistindo à violência sistêmica ou se transformando em símbolos de resistência e força. Por exemplo, em The Hate U Give, a protagonista Starr precisa confrontar seu próprio sentimento de revolta diante do assassinato de seu amigo por um policial, mostrando como a raiva se torna um elemento fundamental para a compreensão de sua identidade e sua luta por justiça.



No entanto, nem sempre a raiva é expressa de maneira explosiva. Em filmes como Nada (2022), de Gabriel Martins - quem está reformulando o gênero no Brasil -, o que predomina é a frustração. A narrativa acompanha personagens jovens que enfrentam o racismo estrutural e as limitações impostas pela sociedade, mas a raiva se manifesta de forma mais contida, expressa através de silêncios, escolhas frustradas e sonhos interrompidos. Aqui, a frustração funciona como um catalisador de transformação, destacando que o "coming of (r)age" também pode envolver uma raiva silenciosa, convertida em resistência e reflexão interna.


Como você já deve imaginar, o "coming of (r)age" tem raízes profundas no pensamento de intelectuais como Audre Lorde e James Baldwin. Em seu ensaio “The Uses of Anger: Women Responding to Racism”, Audre Lorde destaca como a raiva é uma resposta legítima e poderosa ao racismo, especialmente para mulheres negras. Ela argumenta que essa raiva, longe de ser destrutiva, é uma ferramenta de resistência que pode ser transformada em mudança social. Lorde desafia as narrativas que buscam silenciar ou patologizar a raiva negra e reconhece que viver com raiva e aprender a canalizá-la é uma parte essencial da luta contra as opressões (olha aí uma baita curva de aprendizado para as personagens e para nós). O cinema contra-hegemônico utiliza o "coming of (r)age" para mostrar que a raiva não é apenas uma reação à opressão, mas um elemento vital na formação de identidades e na luta por direitos, justiça, reparação e emancipação (que é tudo que o jovem quer, até descobrir que não dá para chorar no horário de trabalho, por exemplo).



Esse conceito também se materializa em minha própria obra, na série A Magia de Aruna, por exemplo. Aqui a fantasia permite especular sobre como a diferença é sentida (e se… houvesse um mundo/tempo onde as bruxas e seus descendentes fossem perseguidos e impedidos de ser quem são? – soa familiar, né?). No primeiro episódio, a personagem Mima, enraivecida por não ser aceita como é, anuncia que não pediu para nascer do jeito que nasceu (ou algo assim, assistam lá, dá essa moral…), o que a lança em uma jornada de amadurecimento. Agora, olhando para trás, vejo que eu mesma, ao escrever, fui conduzida por essa raiva criativamente, "primeiro como linguagem, depois como ideia, então como ação tangível", como diria Audre Lorde, na própria obra.


Além disso, no livro Black Rage (1968), William H. Grier e Price M. Cobbs descrevem a raiva negra como uma energia acumulada ao longo de gerações de opressão, que inevitavelmente é liberada como uma forma de resistência e autoafirmação. Esse conceito se materializa em filmes e narrativas afrodiaspóricas, onde as personagens negras enfrentam e expressam sua raiva diante das injustiças que vivenciam, rejeitando a passividade e reivindicando sua agência e humanidade.


O "coming of (r)age" se apresenta, portanto, não apenas como a jornada de crescimento individual das personagens, mas uma transformação coletiva que questiona e desafia as estruturas de poder. Ele traz à tona a raiva como um elemento de sobrevivência, resistência e luta por justiça, oferecendo uma perspectiva única sobre a experiência negra que vai além da dor e do trauma, e que reconhece a raiva como parte vital da construção de identidades e narrativas de libertação.


BALDWIN, James. The Fire Next Time. New York: Dial Press, 1963.

COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment. New York: Routledge, 1990.

DALY, Lashon. Examining the Role of Anger in Black Girls’ Coming of Age Stories in Film. 2019.

GORDON, William H.; COBBS, Price M. Black Rage. New York: Basic Books, 1968.

LORDE, Audre. The Uses of Anger: Women Responding to Racism. In: LORDE, Audre. Sister Outsider: Essays and Speeches. Berkeley: Crossing Press, 1984.

MARTINS, Gabriel. Nada. [Filme]. Brasil: Filmes de Plástico, 2022.

MATIAS, Anna Rose Holmer. The Fits. [Filme]. Estados Unidos: Oscilloscope Laboratories, 2015.

TILLMAN Jr., George. The Hate U Give. [Filme]. Estados Unidos: 20th Century Fox, 2018.

SCIAMMA, Céline. Girlhood (Bande de Filles). [Filme]. França: Pyramide Distribution, 2014.

BRISTOL, Stefon. See You Yesterday. [Filme]. Estados Unidos: Netflix, 2019.

OLIVEIRA, Maíra. A Magia de Aruna. [Série]. Brasil: Moonshot Pictures/Disney+, 2023.


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