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Vale Tudo para reescrever o Brasil ?

  • Foto do escritor: Maíra Oliveira
    Maíra Oliveira
  • 31 de mar.
  • 7 min de leitura


Sou noveleira com muito orgulho. Cresci acompanhada das tramas que reuniam as famílias em frente à TV, que pautavam conversas no ponto de ônibus, nas filas de banco, no salão de beleza. Mas não vou enganar vocês, foi só recentemente que esse gosto ganhou nome e afirmação, ainda que sempre tenha reconhecido a potência da novela como linguagem e como forma de intervenção simbólica no cotidiano brasileiro. Por isso, hoje — com a estreia da nova versão de Vale Tudo — estou um mix de nostalgia, afeto e uma baita dose de inquietação.

A versão original de Vale Tudo foi um dos maiores fenômenos da teledramaturgia brasileira. Espelhou, tensionou e moldou o imaginário de um país recém-saído da ditadura, em meio à escrita da nova Constituição e a uma crise ética sem precedentes. A novela se tornou campo de disputa simbólica ao colocar, em horário nobre, uma pergunta provocativa: vale tudo para vencer na vida?

A trama dialogava diretamente com (parte) do Brasil de então: desemprego em massa, inflação galopante, escândalos de corrupção, sonegação fiscal. Como aponta o Dicionário da TV Globo, a novela denunciou a ética situacional dos bastidores do poder e encenou o colapso da confiança nas instituições. Personagens como Odete Roitman, Maria de Fátima, Marco Aurélio e César representavam essa moral flexível — ou ausência de moral — tão familiar aos brasileiros. Ainda que a grande maioria destes assistisse a tudo isso do quarto de despejo, o público se via engajado pelas contradições que amava odiar. Mas veja bem, sinto que amávamos odiar a branquitude. E — por que não? — nos deliciar com sua falência.

A televisão, especialmente a novela, sempre foi um espelho — às vezes distorcido, outras vezes revelador — da nossa sociedade. E nunca deixou de ser uma máquina poderosa de formação simbólica. Mas enquanto 80.000 televisores viam o capítulo final de Vale Tudo em 88, dados recentes comprovam que entre outubro e novembro de 2022, as novelas da Globo falaram com cerca de 144 milhões de pessoas diferentes por mês, e 87% do vídeo consumido em casa no Brasil ainda era de televisão linear (Kantar Ibope apud Svartman, 2023). Isso significa que, mesmo diante da multiplicação de telas e plataformas, a novela segue crescendo como um dos principais rituais coletivos do país.

Nos últimos anos, temos assistido a uma proliferação de narrativas audiovisuais que encenam a falência da branquitude e sua ânsia por ascensão social desmedida. Séries como Succession, The White Lotus ou até filmes como Triangle of Sadness expõem, com ironia ou tragédia, o colapso de uma elite branca que se debate entre o privilégio herdado e a perda de controle simbólico sobre o mundo. Muitas dessas histórias são co-protagonizadas por mulheres brancas — complexas, “neuróticas”, ambiciosas — personagens que refletem os impasses morais de uma subjetividade branca diante de um sistema que já não a protege incondicionalmente. Ainda que críticas ao status quo, essas obras raramente rompem com o centro racial da narrativa, mantendo corpos brancos como sujeitos principais da crise e da redenção. Nesse sentido, Gilberto Braga foi precursor dessa reflexão ao expor os dilemas éticos da branquitude brasileira em crise.

Eis então o motivo da minha ansiedade.

Agora, em 2025, a nova versão da novela pode operar um deslocamento radical: ao colocar mulheres negras no centro da dúvida moral nacional, ela não apenas atualizaria a crítica ao sistema, mas também subverteria sua estrutura racial, devolvendo à ficção o poder de imaginar um país sob outros eixos de protagonismo.

Então, quando essa clássica trama retorna com Taís Araújo no papel de Raquel e Bella Campos como Maria de Fátima — mãe e filha negras no centro de uma narrativa que fala, de forma magistral, sobre ética, desejo e o preço da ambição —, por ser roteirista, mulher negra e pesquisadora das artes da cena por um viés afrodiaspórico e decolonial... não tenho como não me perguntar: o que pode significar o protagonismo negro nessa versão? Quais mudanças podem ocorrer no nosso imaginário coletivo quando a honestidade, mas também a força, o desejo e a transgressão são narrados a partir de mulheres negras? E como isso vai ser recebido no Brasil conservador que (sinto muito) não quer se ver nas telas?

O imaginário exerce um papel central na construção das identidades individuais e coletivas. Ele não é apenas um repositório de imagens ou símbolos culturais, mas um campo ativo de produção de sentidos, onde se define o que pode ser visto, dito, sentido e desejado em uma sociedade. Como afirma Cornelius Castoriadis, o imaginário social institui o mundo ao moldar nossas categorias de pensamento e ação. Isso significa que as narrativas que circulam na cultura — especialmente as de grande alcance como as novelas — influenciam profundamente a forma como sujeitos se reconhecem, se posicionam e são percebidos.

Para sujeitos negros, cuja presença foi historicamente marcada por estigmas ou pela ausência, disputar o imaginário é disputar o direito de existir plenamente. Como lembra bell hooks, a representação não é apenas sobre visibilidade, mas sobre os regimes de valor simbólico que definem quem é digno de amor, poder, dúvida ou desejo. Por isso, transformar o imaginário é também transformar as nossas possibilidades.

Eita laiá que a nova versão tem o potencial de reorganizar os termos do discurso, como diria Lélia Gonzalez! Logo, a mudança de cor de pele não é (ou não deveria ser) cosmética — pois ela desloca os eixos de empatia, julgamento, desejo. Quando a honestidade, o trabalho e a dignidade são encarnados por Taís Araújo, e a ambição e a transgressão por Bella Campos, o jogo simbólico muda. E, com ele, pode mudar também o imaginário nacional... vamos sonhar?

Quando Lélia nos convida a pensar a identidade a partir da amefricanidade, conceito que nomeia uma experiência negra forjada na intersecção entre América Latina e herança africana, não sei se ela previa que abraçaríamos cada vez mais nossa latinidade, e nossa africanidade seguiria sendo subjugada. Mas acho que ela também não previu que iriam colocar a mulher negra no centro da narrativa em Vale Tudo. Mas também não sei se Lélia era noveleira... Anyway, o protagonismo negro no horário nobre, nesse clássico, poderia ser o reconhecimento da nossa centralidade histórica na construção da cultura brasileira? Se pudéssemos responder que sim — se o/a leitor/a fosse tão sonhador/a quanto eu —, então, a própria noção de brasilidade poderia se transformar, enfim!

Mas daí eu acordo, tiro remela do olho e bom... lembro que sou roteirista preta.

Esse protagonismo precisa vir acompanhado de mudanças estruturais. Como lembra Cida Bento, a branquitude opera silenciosamente nos bastidores. Quem escreve? Quem dirige? Quem decide os rumos da trama? A presença negra em frente às câmeras pode ser significativa, mas se não houver disputa pelos sentidos e pelas estruturas de poder, corremos o risco da chamada “inclusão decorativa”.

Algo que, mesmo que indiretamente, será tematizado na nova versão com a escolha de Bella Campos para o papel de Maria de Fátima. Pois, se seguir a trama original, Maria de Fátima além da beleza terá a seu favor a "passabilidade", o que nos obrigará a olhar para a pigmentocracia brasileira ou o famoso colorismo — esse sistema de valoração estética e simbólica que favorece peles mais claras e associa a elas mobilidade social, agência, desejo.

Maria de Fátima é a personagem que transgride, que ascende socialmente, que manipula e deseja. Ao atribuir essa personagem a uma mulher negra de pele clara, a novela pode, conscientemente ou não, repetir um padrão em que as peles mais claras são associadas ao desejo e à mobilidade, enquanto as mais retintas ficam com a contenção e o sacrifício. No entanto, há potência nesse jogo — desde que conduzido com criticidade. É preciso romper com a ideia de que só podemos estar na cena como exemplos morais. Podemos errar, cair, nos contradizer — e ainda assim sermos complexas, humanas e merecedoras de narrativa. Oi, Lola Argento!!!!

Como nos ensina bell hooks, a luta por representação negra não pode se contentar com ocupação de espaço: é preciso disputar o modo como esses corpos são vistos, narrados e desejados. bell hooks desvela como a representação visual na cultura ocidental historicamente estigmatiza corpos negros e privilegia padrões brancos. Ela nos lembra que o desafio não é apenas sermos vistos, mas sermos vistos com humanidade, complexidade e agência.

Como aponta Marilena Chaui, a televisão é “a mais perfeita máquina ideológica já inventada”. E Muniz Sodré, em obras como Reinventando da Cultura, observa que os meios de comunicação de massa condensam e organizam o imaginário social, atuando diretamente na construção do senso comum.

Como mostram Nogueira e Svartman (2018), “a ficção é o momento em que a pessoa ressignifica as coisas como pensa, as coisas que sabe. É como se usasse isso para reavaliar o que pensa, ou reafirmar ou contestar, ou se colocar no lugar dos outros.” É por isso que a telenovela forma consciência — não porque “ensina lições”, mas porque cria sensações compartilhadas, experimentações morais, afetivas e políticas que operam sobre o corpo e o cotidiano do espectador.

Não queremos apenas estar na cena — queremos contar o mundo com nossos próprios olhos. Com nossas contradições, nossas falhas, nossa força, nossa beleza. Queremos personagens negras complexas: que erram, caem, se contradizem, mas que existem com humanidade plena. A ética da representatividade exige mais do que rostos negros. Exige outras vozes, outros valores, outras formas de imaginar.

Vivemos um tempo de efervescência: fruto da luta de coletivos negros no audiovisual, das políticas afirmativas, das escolas livres e de toda uma geração de criadores e criadoras que estão tensionando os limites do possível. Criar a partir das epistemologias negras — com liberdade estética e responsabilidade histórica — é parte dessa revolução.

Desejo sorte à equipe, ao elenco, às pessoas que colocam esse projeto de pé. Sei, por experiência, o quanto é desafiador recontar uma história tão marcante. Vivo esse desafio no campo das adaptações e nas narrativas para os streamings, mas não me iludo: minha caneta ainda não chegou a tantos lares ao mesmo tempo. Posso imaginar a pressão! E é por conhecer a árdua tarefa do artista e por acreditar profundamente no poder transformador das novelas, que sinto que estamos diante de um momento histórico (a little bit of drama) e decisivo. Juro! Tô ansiosa.

No Brasil de 2025, essa novela pode ser um marco — ou um alerta.

Se bem conduzida, Vale Tudo pode reconfigurar o lugar da mulher negra na ficção, mostrar que não existe uma só maneira de ser negra, romper com o maniqueísmo que nos dividiu entre a santa sofredora e a vilã ressentida. Pode, enfim, provocar o país a se olhar de novo — e ver que a ética, a ambição e a beleza também têm pele preta.

Acho que sim, ainda vale tudo. Sigo noveleira, mas agora, tô por aqui, escrevendo também.

 
 
 

2 comentários


Clara Oliveira
Clara Oliveira
01 de abr.

Quantas camadas fantásticas pra se observar nessa obra. Uma grande oportunidade mesmo. Que textão ❤️‍🔥

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daianadesouza.escrita
01 de abr.

Agora serei obrigada a assistir a novela para tricotar contigo sobre conjuntura nacional e semiótica... A partir de mãe e filha no horário nobre...

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©2020 por Maíra Oliveira.

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