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Foto do escritorMaíra Oliveira

‘Caminhando contra o vento’ - banalidade como direito manifesto

‘Caminhando contra o vento’ (2018, Buzz/Nos) é um ensaio-depoimento da escritora afro italiana Igiaba Scego que faz um percurso afetivo pelo universo que é Caetano Veloso, trazendo pontos de aproximação com sua própria vida pessoal, transbordando e transformando a paixão que tem pelo artista em uma narrativa de leveza crítica que foge às armadilhas acadêmicas do gênero ensaio, nos envolvendo tal qual um romance.

Parece inusitado uma jovem escritora negra, de família somali, se conectar a obra e vida de um brasileiro branco? Parece! Mas as aproximações que vão desde a intimidade doméstica da casa de Caetano em Santo Amaro da vida da autora na Itália, até o auto-exílio do cantor do não lugar dos imigrantes na Europa hoje, constroem uma intervenção poética na História criticando seus aparentes ciclos viciosos, e como eles afetam diferencialmente corpos diferentes (apesar daquilo que muitos querem nos fazer acreditar - Anti Fascismo e Anti Racismo no Brasil não são a mesma coisa, dãaaa!)

Como Igiaba fala “ceci n’est pas une biographie” de Caetano Veloso e muito menos da escritora, e justamente por não sê-lo que é maravilhosamente envolvente, à medida que nos permite infiltrar nesse registro e encontrar os nossos pontos de aproximação. E é libertador: Igiaba escreveu esse livro por encomenda de uma editora italiana que pediu para que ela falasse de uma paixão pessoal. Pense um minuto sobre esse convite. Te parece banal a materialização de uma narrativa pessoal? E uma narrativa extremamente pessoal PRETA sobre algo tão profundo quanto descompromissado? Taí a libertação. O quão raro é a criação descompromissada (remunerada) e o quão distante é a possibilidade da banalidade para nós autores e autoras negros.

Lembro da fala de Ana Paula Lisboa no ato “Mulheres negras movendo estruturas” na Casa da Pretas naquele dia que não acabou, sobre o desejo de poder comentar sobre vinho, viagens, cabelo… ou seja, existir plenamente na vida e na autoria, e como aquilo me marcou a ponto de incomodar. Bom, sabemos o que houve naquela noite… e por essa e outras vivências, sabemos porque falar de vinho ou qualquer outro assunto é mais um direito negado. É a ‘sobre’ que vem antes do ‘viver’ que fode tudo.

Mas (r)encontrar, em certa medida, esse direito na (re)leitura de ‘Caminhando contra o vento’ é uma lembrança do arrebatamento que a música provoca, do frescor das paixões ditas banais e ao mesmo tempo, enxergar possibilidades, ainda que em vislumbre, daquilo que o Estado teima em nos tirar: a vida.

“Este homem salvou a minha vida”, escreve Igiaba sobre como a obra de Caetano Veloso foi presente na sua saída de um processo de depressão, ignorando propositalmente todas as contradições possíveis de Caetano Veloso. A escrita intencionalmente livre de Igiaba é curativa ao reivindicar para nós nada menos do que ‘seguir vivendo, amor.’ E ‘eu vou. Por que não, por que não?

Igiaba Scego (Roma,1974) é uma autora italiana de família somali. Escreve contos e romances cuja linguagem absorve fábulas, memórias e tradições africanas. Estudou Literatura Moderna na Universidade La Sapienza, em Roma, e trabalhou como jornalista. Lançou na Flip 2018, "Adua" e "Minha casa é onde estou", e o ensaio que comento "Caminhando contra o vento". Editou a antologia Italiani per vocazione (2005) e o livro de entrevistas Quando nasci è una roulette: Giovani figli di migranti si raccontano (2003), dedicados a registrar novas vozes de autores de diversas origens radicados na Itália.


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